sábado, dezembro 02, 2006

Ensaio: Qual a relação entre democracia e democratização da comunicação?

Antes, efetivamente, será necessário buscar em terrenos tão densos quanto ao tema proposto submergindo a tona coordenadas, caminhos que aqui há de se estender em uma afirmação conceitual, e atenuando em uma argumentação que se instale domínios de saber que precede e supera sensitivamente o tema proposto. Mas, relevando a obrigatoriedade dada à questão, questionar a sua função, em sua gênese, procriando algo além daquilo do que lhe é superficial, e consecutivamente, discorrendo de um tema que certamente é de tão vasto pela complexidade de sua natureza na atualidade.
O que seria esta busca então, que não seja a superficialidade dada à questão que habita na atualidade? Perguntar isso nos tomaria a outro nível de erudição que relevaria não só o que a questão suscita, a então algo que antecede propriamente a(s) relação(s) que se instala entre a democracia e democratização da comunicação. Desta maneira, teríamos algo além do que já é pronunciado, um caminho que percorreríamos para chegar à conclusão que tanto é difícil de se enxergar, mas que esta conclusão não subentenda-se a uma finalidade que se resolva pelo viés de uma solução, e que se partir disto, cegará àqueles que anseiam vislumbrar algo que, assim, supere o problema dado à atualidade.
Que caminho seria este então, que mesmo chegando a uma conclusão poderia cegar-nos ao percorrê-lo? A própria questão nos leva a algo que na atualidade cegou-nos pela dimensão, pela proporção que tais conceitos toma para si pensar, toma para si uma significação que não está simplesmente no cumprimento ao que representa como um fenômeno que se sucede ao pôr estes olhos sobre estas palavras, mas que nestas palavras que compõe a questão há ainda uma carga de historicidade que a faz ser a questão que nos apresenta. De maneira que pensar a realidade que nos apresenta toma-nos a uma complexidade que se mostra no pensar, que se demonstra porventura no conceito dado à democracia, também como representar esta democracia a algo que se sustente invariavelmente. Fato é que todo este humanismo em volta dela esconde-se um poder tão sutil, tão meticuloso que certamente impossibilita a uma indagação, impossibilita a compreensão das naturezas aplicadas a este pensar, ao passo disto, tem por impressão quase que uma mão que sufoca e ao mesmo tempo afaga o respirar.
Qual a relação entre a democracia e a democratização das comunicações? A partir desta mesma pergunta surge-nos, pois na verdade habita na mesma questão, diversas outras questões que entorpece nossos sentidos, que restringe a percepção de ir além do que é promulgado na questão. Desta maneira, surge-nos tais perguntas que por serem tão densas, tão vastas comumente surte a uma indiferenciação quanto a sua importância, angustiando a nós pela incapacidade de ater a uma segurança que se rompe ao se pronunciar O que é isto a Democracia? O que isto a Democratização? O que isto a Comunicação?
Esta segurança remete-se a propensa universalidade na atualidade ao supor a democracia, esta palavra restringe os sentidos pela suposta convenção que se aplica a realidade. De certa forma, sua conjectura política, direito e dever se completam à necessidade (necessidade??) da organização social, este organismo tem sua formação clássica até uma forma especifica característica deste pensar na atualidade, passeando por diversas formas que se apliquem à organização, em virtude adentra-se não-só na figura clássica de democracia grega mas também na representação de estruturas mediantes que perpassam na historia, estruturas que viabilizam o poder que alastra-se na figura de uma sociedade despótica, em uma ditadura que marcaram sensivelmente o corpo social. Questionar a palavra democracia, remete-se muito bem ao temor em talvez reconstituir certas formas de poder que flagelaram muitas sociedades, possibilitando seu renascimento ao se problematizar a mesma, mas creio que, pela própria configuração de um passado não tão distante possibilita-nos a uma ação que se adentre a novos caminhos, que adentre não em negatividade ao conceito dado à palavra, mas que seu uso na atualidade torna-se falsos problemas reais. Por isso, questionar a democracia não detém simplesmente da questão do seu uso mas do uso da qual é feito, do uso feito pela tríade de políticas, de direitos e de deveres que se institucionaliza ao se promulgar democracia. O escritor francês Michel Foucault tem em mente muito bem isto ao se deparar com as práticas de poder jurídicas penais em seu livro Vigiar e Punir, ou no processo de exclusão social que se aplica em História da Loucura e como também em Historia da Sexualidade, estas arqueologias demonstram práticas que configuram o exercício de poder para se estabelecer à necessidade de organização social.

“Creio que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da dominação da classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar historicamente, partindo de baixo, a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar; por exemplo, quanto à exclusão da loucura ou à repressão e proibição da sexualidade, ver como, ao nível efetivo da família, da vizinhança, das células ou níveis mais elementares da sociedade, esses fenômenos de repressão ou exclusão se dotaram de instrumentos próprios, de uma lógica própria, responderam a determinadas necessidades; mostrar quais foram seus agentes, sem procurá-los na burguesia em geral e sim nos agentes reais (que podem ser a família, a vizinhança, os pais, os médicos, etc) e como estes mecanismos de poder, em dado momento, em uma conjuntura precisa e por meio de determinado número de transformações começaram a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis.”[1]

Mas, apesar das diversas práticas criadas para gerir a democracia enquanto tríade de políticas, de direitos e deveres sociais, ainda será preciso escavar um sentido próprio que se dá à palavra democracia, propondo uma assertividade que culminou o pensar. Desta maneira, será necessário pensar a palavra em seu principio, com efeito, situar a democracia, perguntar o que é a democracia, nos remete não só a relação que se expõe à questão, mas como reativar a origem historial, assim, a palavra democracia nos leva à sua criação como símbolo significativo, nos trás a palavra grega demoskràthos que propicia a sua simbologia na atualidade.
A palavra grega, demoskràthos, transmite uma carga historial que reflete significativamente sua criação perante a sociedade grega, ou melhor, na figura representativa da polis ateniense. Esta polis, como principio de democracia, situa-se na convicção do meio estrutural que acarreta suas formas de relação do homem para a sua cidade, que se situa em um meio que se estabelece entre as figuras dos eupátridas, os grandes proprietários de terras; os georgói pequenos proprietários de terras; os demiurgos artesões e comerciantes; e as últimas duas classes, os estrangeiros e os escravos. A democracia ateniense é direta, tem como em sua legitimidade todos aqueles que nasceram em Atenas, filhos (homens) de pais de atenienses e que obtiverem a sua maioridade para assim efetivar sua participação nas ações políticas que submetem à sociedade. Pode-se ainda, além do processo de direito de legitimação de apenas homens filhos de pais atenienses e nascidos em Atenas, um processo de exercício de poder gerado através do trabalho escravo que regia este povo, que mantém o bem estar social e econômico, assim como exemplifica Foucault “mecanismos de poder (...) a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis” para a sociedade grega, para a sociedade ateniense que tem como dever pensar em sua existência.
Temos então o principio da origem do pensamento do que é a democracia, temos então as características que define a existência do signo demoskràthos em sua historicidade, e assim, conferir a esta palavra seu lógos que a língua grega tem em sua criação possibilita-se reger outro caminho possível, outro caminho que se soma a esta carga de historicidade, ou até mesmo é está carga de historicidade que se confunde ao pensar na historia. Antes, vale lembrar que a língua grega é uma língua única, criada sempre em função do lógos, em função da lógica, da retirada da coisa mesma a sua significação, desta forma, a palavra demoskràthos, representa o povo (demos) ateniense em sua instancia de poder (kràtros) enquanto ser ateniense, desta maneira, percebe-se que este lógos tem em si uma afirmação que se estabelece para a configuração da palavra, do signo democracia, delimitando o agir ateniense enquanto ser ateniense.
Mas, esta representação do signo tão-só nos apresentaria um caminho em direção a uma verdade final? Então, se ela não se efetua como uma verdade de causa final, por onde esta verdade (se é que posso chamar de verdade) caminharia? Ainda, permanece uma dúvida que se estabelece ao se perguntar; Que é isto o povo? Que é isto o poder? Ao questionar o que é o povo, por exemplo, temos em vista para a significação do signo, da palavra democracia a interpretação daquilo que se dará o ser ateniense enquanto ser ateniense, em viés que, mesmo ao se estabelecer às classes que existiam nesta sociedade ainda não compreenderíamos a intenção de efetuar o legitimo homem a soberba de promulgar direitos e deveres como aquele que nasceu em Atenas e filhos de pais atenienses. Que legitimo povo seria este que existe perante esta cidade? Que exerce poder perante esta cidade? Poderia-se destinar que estes indivíduos quanto atenienses seriam marcados tão-só atenienses dado a sua existência à Atenas, dada a sua existência ao território que limita-se às fronteiras que o circula?
O que torna evidente em uma concepção conceitual ao signo povo remete-se constantemente a acepção ao que se dará a sua significação, tendo em si uma busca por uma assertiva além daquilo que simplesmente reduz à palavra. Claramente ao se pronunciar a palavra povo toma-se um conceito abstrato que totaliza uma assertividade sobre uma natureza, ou diversas naturezas que se fundem, de maneira que transcende a uma compreensão em um campo empírico. Desta forma, a palavra povo soma-se a um predicativo que definiria, ou melhor, que preencheria uma lacuna, um vazio que se expõe ao se pronunciar. O povo, talvez então, entende-se como uma cadeia de amontoados de identidades (entenda-se amontoado de identidades tal como a relação de criação, de demarcação deste território da palavra povo) que preenchem um determinado território, este amontoado de identidades criadas compõe aquilo que define categoricamente o ser de Atenas, o ateniense. Assim, toma-se o problema a uma forma que não simplesmente em um processo de exclusão da significação metafísico do signo, mas que se afirma na construção, na delimitação de um território que possivelmente constituirá um povo e claramente um predicativo que subtende-se a este povo.
Chegamos a uma pergunta que nos faz erguer um pilar de acontecimentos que constitui a palavra povo, como que possivelmente resgatando a origem dos demais problemas; Quem é este que demarca este território, que cria suas fronteiras? Fronteiras imaginárias que segmentam o povo. Pensar em povo é pensar nessas linhas imaginárias que parecem eternizar o território, mas como bem sabemos, estes mesmos territórios já passaram por inúmeras demarcações, permutando diversas vezes povos sobre povos. Concatenando uma proximidade com as questões que sucedem para se chegar a esta assertiva, refere-se certamente à questão metafísica que se dá ao valor atribuído ao limite espacial dado; diversos tipos de limites espaciais são determinados na nossa sociedade atual, como bem na sociedade democrática grega, limites estes no pensar, no agir, territoriais, etc. – assim como Foucault exemplifica há uma tendência em se criar verdades universais que restringem o homem a uma forma de saber que se renove, e esta tendência tem sempre pelo viés um controle, um exercício de poder.

“Poderíamos assim opor dois grandes sistemas de analise de poder: um seria o antigo sistema dos filósofos do século XVIII, que se articularia em torno do poder como direito originário que se cede, constitutivo da soberania, tendo o contrato como matriz do poder político. Poder que corre o risco, quando se excede, quando rompe os termos do contrato, de se tornar opressivo. Poder-contrato, para o qual a opressão seria a ultrapassagem de um limite. O outro sistema, ao contrario, tentaria analisar o poder político não mais segundo o esquema contrato-opressão, mas segundo o esquema guerra-repressão; neste sentido, a repressão não seria mais o que era a opresão com respeito ao contrato, isto é, um abuso, mas, ao contrário, o simples efeito e a simples continuação de uma relação de dominação. A repressão seria prática, no interior desta pseudo-paz, de uma relação perpétua de força.”[2]

Antes, também será necessário pensar sobre o que é o poder, não em sua forma de uso característico da sociedade, mas pensá-lo como uma força que rege a natureza, pensá-lo como um cosmo que sempre retorna para suceder novas temporalidades, para marcar definitivamente o curso da história. Por isso, pensar este arkhè, possibilita-nos migrar nossos pensamentos a uma capacidade de pressentir, de resistir ao exercício de poder, ao sistema de opressão, e de repressão que atua diretamente sobre o ser e o agir. Ao fazer, a pergunta; O que isto o poder? Temos em vista uma potência em que o pensar submerge para além do que é posto. Por isso, pensar em poder, não é simplesmente pensar em seu exercício, pensar em poder é pensar diretamente no estado que ele se produz, assim, pensar no seu estado de sendo uma potência geradora. Deve-se, portanto, não generalizar sua forma especifica de manipulação dada às práticas de sua manutenção, estas práticas, ao contrário tem como função castrar diretamente aqueles de espíritos livres, que por bem nascem para o fervor de seu ser para a vida, para o mundo. Estes de espíritos livres, compõem sua liberdade para algo que preexiste diretamente com, como Foucault observa, um ‘cuidado de si’, na encrateia, no autocontrole. Com efeito, buscar a liberdade é antes buscar um ethos, gerir sua maneira de ser e de agir, é desta ética que os gregos se baseavam em sua forma de pensar, visto que, excetuando os fatores de exercício de poder tirânico e de práticas jurídicas que atestavam a sociedade, os gregos não eram aterrorizados por um sistema subjetivo de exercício de poder moral que se alastra desde o surgimento do cristianismo até diversas outras práticas atenuantes.
Michel Foucault intensifica seu pensar a uma característica particular que difere do pensar da liberdade geral promulgada nas sociedades burguesas atuais, isto é, o sujeito da liberdade é constituído diferentemente um do outro, salvo seu ‘cuidado de si’ que permeia sua conduta no autocontrole, no domínio de seus prazeres. E, não a argumentar a liberdade como experiência de sujeição a um signo de uma necessidade única, de maneira que a liberdade é uma condição, é um elemento caracterizador e delimitador do próprio ser, como o Dasein heideggeriano. Dizer que a liberdade não está condicionada a sujeição a um signo de uma necessidade única, institucionalizada é dizer que não há uma determinação absoluta do ser, e logo, a liberdade se constrói, é a experiência, se reformula, se constitui a partir de cada acontecimento a que se expõe o sujeito.
Torna-se ainda, mesmo que suscetível ao bom grado o ‘cuidado de si’, este ethos que se potencializa na maneira de ser e agir do sujeito como acontecimento, questões que sucedem nesta hermenêutica da palavra democracia, do demos (povo) e kràthos (poder) que se questionou. Tais perguntas como; Que é isto o ser? Que é isto o agir? O ser e o agir estão interligados quase que em uma forma homogenia de duas naturezas. Recorro aqui a Martin Heidegger para tornar estas questões que são tão densas e tão vastas a uma forma que não a feche em uma universalidade, pois creio que estas questões são questões que circulam a humanidade, estas perguntas são ontológicas, eles repetem-se incessantemente pelas diversas pessoas que indagam, com diferentes respostas.

“Todo ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de modo trivial em nosso ouvido, quando não de modo ofensivo. Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser, ninguém precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente é aquilo que é. Qual outra solução para o ente a não ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que o ente permaneça recolhido no ser, que no fenômeno do ser se manifesta o ente; isto jogava os gregos, e a eles primeiro unicamente, no espanto. Ente no ser; isto se tornou para os gregos o mais espantoso.”[3]

Agora se pode ir além daquilo suposto, indo em direção a um caminho claro, que não obscurecido pelo medo deste caminho dado a partir da questão, qual a relação entre democracia e democratização da comunicação nos é dada para um sentido amplo. Com efeito, pensar em comunicação é antes também pensar na relação de poder (kràthos) sobre o povo (demos), é pois corresponder estas duas assertivas que preenchem a comunicação em sentido amplo, preenchem de sentido a sua criação para atribuir exercício de poder, de dominação. É categórico este exercício de poder visto que é possível apreender sua criação através do arkhé, da origem de seu pensar, assim é compreensível se analisar as suas teorias, seus estudos como forma essencial de definição da relação especifica que dá ao postular, tal como a teoria hipodérmica que baseada na teoria behaviorista de Skinner atesta-se o poder de manipulação. Pensar nestes estudos é situar uma guerra que alastra-se contaminando o individuo, o ser e o agir do homem em sua produção de liberdade, em seu domínio de si.
Este ensaio teve por finalidade, mesmo que esta finalidade estenda-se para sua postulação de forma sucinta na arqueologia da comunicação, demonstrar as falhas de se pensar na democracia como uma síntese das forças do povo e ainda de se pensar na formação de sua palavra como origem destes falsos problemas que submete-se ao se analisar a democracia, visto que a democracia como poder do povo irá se remeter a um limite espacial que configurará essa palavra, sendo que para além de se exercer poder para a construção deste território, mas como também de manter estes limites espaciais que decorrem do exercício de poder de um a um outro, de um povo a outro povo. A comunicação, como Foucault exemplifica tomará esta postura como verossimilhança a forma de se vigiar, de se exercer e de se manter o poder, assim antes os povos eram marcados por guerras, por religiões, governos despóticos, agora eles são marcados por olhos que flagelam a sua vontade de ser e de agir, criando uma rede de vigilância poderosíssima.

“É a ilusão de quase todos os reformadores do século XVIII, que deram à opinião uma autoridade considerável. A opinião só podendo ser boa por a consciência imediata de todo o corpo social, eles acreditaram que as pessoas iriam se tornar virtuosas pelo simples fato de serem olhadas. A opinião era para eles como que uma reatualização espontânea do contrato. Eles desconheciam as condições reais da opinião, as media, uma materialidade que obedece aos mecanismos da economia e do poder em forma de imprensa, edição, depois de cinema e televisão.”[4]
Notas:
1- Foucault, Michel; Microfisica do Poder; Artigo Soberania e Disciplina.
2- Foucault, Michel; Microfísica do Poder; Artigo Genealogia do Poder.
3- Heidegger, Martin; serie Os Pensadores; Que é isto - filosofia?
4- Foucault, Michel; Microfísica do Poder; Artigo Olho do Poder.